por Katia Thomaz
O médico e jornalista Ricardo Coler, especialista em sociedades matriarcais, poligâmicas e poliândricas, relata n'
O Reino da Mulheres [Editora Planeta do Brasil, 2008] sua interessante viagem ao povoado de Loshui, na China. Encravados entre as montanhas, vivem 25 mil habitantes da comunidade Mosuo, uma das últimas sociedades matriarcais de todo o mundo.
Destacam-se, a seguir, algumas passagens do livro para reflexão:
"No resto do planeta, os homens ocupam, por ampla maioria, os lugares de decisão e os postos de poder. Não é assim entre os Mosuo. Em Loshui, a propriedade está sempre nas mãos da mulher e, quando chega o momento, só as filhas podem herdar. Elas são donas de fazer e desfazer a seu bel-prazer. Na aldeia não há dama que careça de oportunidades, que não seja digna de consideração ou que se encontre submetida ao arbítrio da sociedade. [...] Isso significa que aqui não há quem precisa libertar-se por sua condição de mulher. São e foram livres desde sempre. O que acontece na sociedade matriarcal é fruto de uma cultura onde a condição feminina se impõe sem restrições masculinas." (p. 69-70)
"O matriarcado não é uma questão de regras que melhoram o lugar e o direito da mulher. O matriarcado é uma simples questão de atitude; o resto são referências bibliográficas. É preciso ver quem tem o comando, e não basta que as relações entre homens e mulheres sejam igualitárias. Quando a sociedade é realmente uma sociedade matriarcal, sente-se o peso da hierarquia feminina na vida cotidiana. É mister que, quando falam com um homem, façam-no com uma postura erguida, que na voz se note a autoridade, e que, quando derem uma opinião não haja lugar a dúvidas. A atitude é o que define uma sociedade como matriarcal. (p. 70-71)
"Os Mosuo denominam 'família' os que têm um laço de sangue direto entre si e convivem na mesma propriedade, a casa do clã. A figura principal é a matriarca. Com ela moram seus filhos, sua mãe e seus irmãos, tanto homens quanto mulheres. Também fazem parte do grupo os filhos das irmãs e os netos. Não existem maridos. Os homens sem laço sanguíneo direto com a matriarca pertencem a outra casa e dormem sob outro teto. Isso implica total ausência de pais e avôs, que são desconhecidos ou, na melhor das hipóteses, são considerados de outra família. Os homens que habitam a propriedade são somente irmãos, tios e filhos." (p. 48)
" Após a cerimônia de iniciação, cada mulher da aldeia tem acesso a um quarto próprio. Esta é uma diferença acentuada em relação aos homens. Eles moram com suas mães, onde têm designados aposentos de uso comum.
As mulheres, por sua vez, contam com um local reservado, um lugar onde podem ficar sozinhas, velar seus detalhes e tornar-se íntimas. Entrará exclusivamente quem elas quiserem e quando elas determinarem.
Na porta do quarto, há um gancho de madeira. Ali o companheiro que ela escolher para visitá-la esta noite pendura o gorro. O gorro na porta é um sinal, avisa a qualquer outro que venha tentar a sorte que a mulher está ocupada e não deseja ser incomodada.
O vínculo amoroso é chamado de
axia, ou casamento andante. O casamento andante parece-se muito pouco ao que no Ocidente se entende por casamento. Cada um mora em sua casa. À noite, o homem visita o quarto da mulher com quem marcou um encontro.
Xia, significa amantes, e neste caso, a letra 'a' é um simples prefixo que indica intimidade. [...] Manter esse tipo de relação não implica nenhum vínculo. A visita dura o que durar a noite e não significa tornar a se ver. [...] Tanto os membros de outras aldeias quanto os viajantes podem ter
axia com as mulheres Mosuo. Mas elas têm o cuidado de não permitir a entrada se forem de trato pouco amável ou se gostarem de expressar-se com termos obscenos. [...] As damas dispõem ainda de outro privilégio. Quando preferem, fecham a porta." (p. 29-31)
"A família matriarcal é incompatível com o casamento, todos os seus integrantes são consaguíneos. E a sensualidade, essa atividade que pode ser maravilhosa, mas que também é um pouco complexa, nunca bem resolvida nem totalmente satisfeita, que é ao mesmo tempo fonte de prazer e de alto grau de instabilidade, nunca fundamenta um lar. Para praticá-la, devem sair de seus limites. Isso lhes dá a liberdade de apaixonar-se sem correr o risco de, se não der certo, perder amor e família ao mesmo tempo." (p. 85)
"O
status das amigas nas família Mosuo é algo que chama a atenção. São muito próximas, dividem seus assuntos e mantêm-se a par das novidades. Quando entro em uma casa Mosuo é frequente que alguma das mulheres saia em busca da amiga. Voltam de mãos dadas, excitadas pela presença do estrangeiro, e depois se sentam para compartilhar a experiência e opinar ao mesmo tempo. Minha visita é um evento que não pode ocorrer sem que uma amiga o presencie. Riem juntas, acostumadas a um mesmo código de humor. Seguram-se as mãos, abraçam-se, tocam seus rostos." (p. 92)