terça-feira, 23 de março de 2010

Coco antes de Chanel

reprodução parcial da crítica de Marcello Castilho Avellar publicada no Caderno Cultura do Estado de Minas de 1o. de Março de 2010

Quando alguém fala de Coco Chanel (1833-1971), a primeira coisa que nos vem à cabeça é moda. Afinal, ela foi a estilista mais importante da história, e sua influência pode ser sentida até hoje, quase 40 anos depois de sua morte, na maneira como as pessoas se vestem, cortam seus cabelos, pensam o figurino de filmes ou espetáculos. Mas a importância de Chanel vai além disso: ela foi uma das pioneiras da revolução do comportamento que marcou o século XX. O maior mérito de Coco antes de Chanel, dirigido por Anne Fontaine [um raro filme sob o olhar feminino], é a sutileza com que nos apresenta àquela revolução.
Vejamos um exemplo. Parte significativa daquela drástica transformação nos acontecimentos constitui-se no que nos acostumamos chamar de "revolução sexual" - que ocorreu ao longo de todo o século passado [séc. XX], mas teve seus momentos mais marcantes entre os anos 1960 e 1980. Coco antes de Chanel concentra-se principalmente nos anos de juventude da estilista, entre a época em que conheceu o barão Etienne Balsan (1908) e a morte do grande amor de sua vida, Arthur "Boy" Capel (1919) - bem antes da tal revolução sexual, portanto. Em dado momento do filme, Boy e Coco estão prestes a fazer amor. "É tão fácil despir você", diz ele. Está acostumado a mulheres cheias de anáguas, combinações, corpetes, enfeites, fechos em lugares desconfortáveis. Pela primeira vez, despe alguém que usa apenas um vestido simples e uma combinação.
Subitamente, o espectador toma consciência do quanto o sexo era complicado há apenas um século. Não era somente a proibição social que o tornava difícil. Aquela proibição havia forjado uma série de estruturas culturais que lhe garantiam a sobrevivência - entre outras, a pilha de roupas com que as mulheres eram sufocadas. Garantia de que às mulheres seria vedada qualquer atividade física intensa - trabalho de homem.
Coco antes de Chanel é um filme que nos lembra de que as proibições não bastam em si mesmas, necessitam de estruturas materiais para serem impostas às pessoas. A estratégia do conservadorismo seria, então, disfarçar a repressão a qualquer grupo, divulgando-o como algo ameno - moda, por exemplo. A importância de Coco Chanel foi perceber que essa estratégia poderia ser alterada: seus discurso e ação libertários não se realizaram em palanques ou parlamentos, mas na destruição sistemática dos mecanismos que aprisionavam as mulheres e na proposição de novos mecanismos que as libertassem - também disfarçados de algo aparentemente frívolo, novamente a moda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário