por Laura Medioli, publicada em 04/03/2008
Por mais de dez anos, participei ativamente com trabalhos voluntários em algumas vilas e favelas da Grande Belo Horizonte. Desde menina, acompanhando minha mãe, acostumei-me a freqüentar ambientes carentes e a descobrir ali seus mais ricos valores humanos.
Experiências foram centenas e confesso que hoje, relembrando histórias, me bate uma certa saudade. Saudade do tempo em que, mesmo à noite, podia andar sozinha nos becos ou rodeada por crianças em permanente algazarra que me pediam balas e me chamavam de tia. Moradores que me conheciam pelo nome e me abriam suas portas para um cafezinho.
Já tomei muito café e ouvi muitas histórias. A conta da luz atrasada, o companheiro que sumiu no mundo ou simplesmente se juntou com a outra, a filha adolescente grávida sabe-se lá de quem, o trabalho que não vem, a saúde que anda mal, quebranto, mau-olhado. O forasteiro maníaco, ameaçando as crianças na hora de irem à escola, o porco imundo e magricela que invade a cerca vizinha, o pitbull amarrado, ameaçando se soltar.
A meninada na rua, exposta ao esgoto aberto. Os bares cheios, vendendo cerveja e cachaça a rodo e os pais irresponsáveis que nunca pagam a pensão. Sinucas rasgadas, truco no meio da rua. Seeeeeis só, pato!!! Gritam os homens, enquanto as mulheres observam caladas, cuidando dos filhos, lavando as roupas, costurando, fazendo salgados pra fora, colocando comida em casa. Alguém tem que fazer isso. Determinadas, sem medo, elas tocam o barco. Mulheres incríveis que, ao longo dos anos, aprendi a respeitar.
O imóvel encontra-se fechado, doação antiga de uma entidade religiosa. Sem água, sem luz, sem utilidade. Resolvemos reabri-lo, montar ali a sede de uma associação. Pago contas atrasadas, novas telhas, portas, janelas, caixa dágua. A feitura de uma escada, que a criançada não deixa.
O pedreiro quer desistir, enquanto coloca a massa, a meninada observa. A escada está pronta e no dia seguinte, cadê? Um amontoado de cimento espalhado. O pedreiro já não sabe o que fazer. Chamo os garotos e dou a eles uma missão: - Estão vendo essa escada? Quero que tomem conta dela. Não deixem que ninguém a estrague. Olha lá, hem? Confio em vocês!
No dia seguinte, a escada intacta. Além das mulheres, um exército de garotos a nos ajudar. As paredes são pintadas em esquema de mutirão. Os homens lá fora, rindo e jogando truco, enquanto nós, em cima de mesas e escadas, fazemos a nossa parte. Um ou outro, mais consciente, vem em auxílio. Às vezes perdia a paciência e ia pra rua. - Pô, gente! Não estão vendo que precisamos de ajuda??? E eles, indiferentes, continuavam seus jogos, como se minhas palavras não lhes dissessem respeito.
- Seeeeeis só, pato! Escuto e entendo que, dali, não sairia nada. O salão é inaugurado por um senhor "derramado" que, finalmente, foi descansar. O velório dura a noite inteira. No dia seguinte, um ônibus lotado para o cemitério da Paz. Depois outros mortos. Idosos, crianças... Como doía ver os caixõezinhos brancos. Ao lado, mães transtornadas pelo sofrimento. A chegada do ônibus, o cemitério, dor, choros e desmaios.
Invariavelmente nessa ordem. O salão não serve apenas de velório. Ali se faziam reuniões, debatiam- se questões comunitárias como a formação de uma entidade que representasse os moradores do local. Meninas de 12 a 16 anos mostram os ventres avolumados. Sequer se dão conta da responsabilidade que carregam. Falta-lhes maturidade, idade, trabalho, perspectivas. Mais um filho para a mãe criar.
Filhos e netos se misturam num ambiente pequeno, carente e, às vezes, promíscuo. Convido um ginecologista acostumado a dar palestras sobre controle de natalidade. As palestras feitas à noite enchem o salão. As garotas se interessam, fazem milhões de perguntas. As senhoras mais idosas me chamam no canto pra reclamar. - Que doutor é esse que fala tanta bobagem? Explico que ele deve ser claro, para que as pessoas o entendam. Se no lugar de pênis ele fala pinto, não é porque seja um depravado, é a maneira que encontrou para ser melhor compreendido. De nada valeram meus argumentos, as senhoras, muitas delas evangélicas, saíam. Indignadas.
No final das tardes, sentava-me com as meninas nas calçadas pra jogar conversa fora e tratar de assuntos femininos, aquela "manchinha transparente" 14 dias depois da menstruação. É aí que mora o perigo! Tento explicar de maneira simples os períodos férteis. E elas, rindo, vêm me contar seus casos, ou cheias de preocupação, suas dúvidas e medos.
Camisinhas e DST, eram os assuntos do dia. Tentei fazer a minha parte, e me entristecia sempre ao ver meninas de saias curtas, carregando pelas ruas seus recém-nascidos. O salão comunitário, devido à grande necessidade, um dia transformou- se em creche. "Recanto da Laurinha" foi como o batizaram.
Sensibilizada, agradeci às mães - homenagens assim jamais serão esquecidas. O espaço tornou-se pequeno para o grande número de crianças e a creche, enfim, teve que ser transferida. O tempo passou. Aos poucos fui renunciando às minhas atividades nas cinco comunidades que escolhi para trabalhar.
A droga, a violência e o terror imposto pelo tráfico me impedem de voltar. Quinze anos de experiências e aprendizagens deixam marcas. Deixam saudades... E me lembro do salão que ajudei a montar e que tantas vezes freqüentei.
Fechado? Esquecido? Ou ainda é utilizado para velar os corpos - hoje, quase que exclusivamente de jovens, mortos por overdose ou balas dirigidas por quem se sentiu prejudicado num acerto de contas. Ao lado deles, as mães, transtornadas pelo sofrimento. Silêncio, tristeza e medo. Muito medo.
Experiências foram centenas e confesso que hoje, relembrando histórias, me bate uma certa saudade. Saudade do tempo em que, mesmo à noite, podia andar sozinha nos becos ou rodeada por crianças em permanente algazarra que me pediam balas e me chamavam de tia. Moradores que me conheciam pelo nome e me abriam suas portas para um cafezinho.
Já tomei muito café e ouvi muitas histórias. A conta da luz atrasada, o companheiro que sumiu no mundo ou simplesmente se juntou com a outra, a filha adolescente grávida sabe-se lá de quem, o trabalho que não vem, a saúde que anda mal, quebranto, mau-olhado. O forasteiro maníaco, ameaçando as crianças na hora de irem à escola, o porco imundo e magricela que invade a cerca vizinha, o pitbull amarrado, ameaçando se soltar.
A meninada na rua, exposta ao esgoto aberto. Os bares cheios, vendendo cerveja e cachaça a rodo e os pais irresponsáveis que nunca pagam a pensão. Sinucas rasgadas, truco no meio da rua. Seeeeeis só, pato!!! Gritam os homens, enquanto as mulheres observam caladas, cuidando dos filhos, lavando as roupas, costurando, fazendo salgados pra fora, colocando comida em casa. Alguém tem que fazer isso. Determinadas, sem medo, elas tocam o barco. Mulheres incríveis que, ao longo dos anos, aprendi a respeitar.
O imóvel encontra-se fechado, doação antiga de uma entidade religiosa. Sem água, sem luz, sem utilidade. Resolvemos reabri-lo, montar ali a sede de uma associação. Pago contas atrasadas, novas telhas, portas, janelas, caixa dágua. A feitura de uma escada, que a criançada não deixa.
O pedreiro quer desistir, enquanto coloca a massa, a meninada observa. A escada está pronta e no dia seguinte, cadê? Um amontoado de cimento espalhado. O pedreiro já não sabe o que fazer. Chamo os garotos e dou a eles uma missão: - Estão vendo essa escada? Quero que tomem conta dela. Não deixem que ninguém a estrague. Olha lá, hem? Confio em vocês!
No dia seguinte, a escada intacta. Além das mulheres, um exército de garotos a nos ajudar. As paredes são pintadas em esquema de mutirão. Os homens lá fora, rindo e jogando truco, enquanto nós, em cima de mesas e escadas, fazemos a nossa parte. Um ou outro, mais consciente, vem em auxílio. Às vezes perdia a paciência e ia pra rua. - Pô, gente! Não estão vendo que precisamos de ajuda??? E eles, indiferentes, continuavam seus jogos, como se minhas palavras não lhes dissessem respeito.
- Seeeeeis só, pato! Escuto e entendo que, dali, não sairia nada. O salão é inaugurado por um senhor "derramado" que, finalmente, foi descansar. O velório dura a noite inteira. No dia seguinte, um ônibus lotado para o cemitério da Paz. Depois outros mortos. Idosos, crianças... Como doía ver os caixõezinhos brancos. Ao lado, mães transtornadas pelo sofrimento. A chegada do ônibus, o cemitério, dor, choros e desmaios.
Invariavelmente nessa ordem. O salão não serve apenas de velório. Ali se faziam reuniões, debatiam- se questões comunitárias como a formação de uma entidade que representasse os moradores do local. Meninas de 12 a 16 anos mostram os ventres avolumados. Sequer se dão conta da responsabilidade que carregam. Falta-lhes maturidade, idade, trabalho, perspectivas. Mais um filho para a mãe criar.
Filhos e netos se misturam num ambiente pequeno, carente e, às vezes, promíscuo. Convido um ginecologista acostumado a dar palestras sobre controle de natalidade. As palestras feitas à noite enchem o salão. As garotas se interessam, fazem milhões de perguntas. As senhoras mais idosas me chamam no canto pra reclamar. - Que doutor é esse que fala tanta bobagem? Explico que ele deve ser claro, para que as pessoas o entendam. Se no lugar de pênis ele fala pinto, não é porque seja um depravado, é a maneira que encontrou para ser melhor compreendido. De nada valeram meus argumentos, as senhoras, muitas delas evangélicas, saíam. Indignadas.
No final das tardes, sentava-me com as meninas nas calçadas pra jogar conversa fora e tratar de assuntos femininos, aquela "manchinha transparente" 14 dias depois da menstruação. É aí que mora o perigo! Tento explicar de maneira simples os períodos férteis. E elas, rindo, vêm me contar seus casos, ou cheias de preocupação, suas dúvidas e medos.
Camisinhas e DST, eram os assuntos do dia. Tentei fazer a minha parte, e me entristecia sempre ao ver meninas de saias curtas, carregando pelas ruas seus recém-nascidos. O salão comunitário, devido à grande necessidade, um dia transformou- se em creche. "Recanto da Laurinha" foi como o batizaram.
Sensibilizada, agradeci às mães - homenagens assim jamais serão esquecidas. O espaço tornou-se pequeno para o grande número de crianças e a creche, enfim, teve que ser transferida. O tempo passou. Aos poucos fui renunciando às minhas atividades nas cinco comunidades que escolhi para trabalhar.
A droga, a violência e o terror imposto pelo tráfico me impedem de voltar. Quinze anos de experiências e aprendizagens deixam marcas. Deixam saudades... E me lembro do salão que ajudei a montar e que tantas vezes freqüentei.
Fechado? Esquecido? Ou ainda é utilizado para velar os corpos - hoje, quase que exclusivamente de jovens, mortos por overdose ou balas dirigidas por quem se sentiu prejudicado num acerto de contas. Ao lado deles, as mães, transtornadas pelo sofrimento. Silêncio, tristeza e medo. Muito medo.
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